Rachel de Queiroz: Crônica "Talvez o Último Desejo"
Talvez o último
desejo
Pergunta-me com muita seriedade uma moça
jornalista qual é o meu maior desejo para o ano de 1950. E a resposta natural é
dizer-lhe que desejo muita paz, prosperidade pública e particular para todos,
saúde e dinheiro aqui em casa. Que mais há para dizer?
Mas a verdade, a verdade verdadeira que eu
falar não posso, aquilo que representa o real desejo do meu coração, seria
abrir os braços para o mundo, olhar para ele bem de frente e lhe dizer na cara:
Te dana!
Sim te dana, mundo velho. Ao planeta com todos
os seus homens e bichos, ao continente, ao país, ao Estado, à cidade, à
população, aos parentes, amigos e conhecidos: danem-se! Danem-se que eu não
ligo, vou pra longe me esquecer de tudo, vou a Pasárgada ou a qualquer outro
lugar, vou-me embora, mudo de nome e paradeiro, quero ver quem é que me acha.
Isso que eu queria. Chegar junto do homem que
eu amo e dizer para ele: Te dana, meu bem! Dora em vante pode fazer o que
entender, pode ir, pode voltar, pode pagar dançarinas, pode fazer serenatas,
rolar de borco pelas calçadas, pode jogar futebol, entrar na linha de
Quimbanda, pode amar e desamar, pode tudo, que eu não ligo!
Chegar junto ao respeitável público e
comunicar-lhe: Danai-vos, respeitável público. Acabou-se a adulação, não me
importo mais com as vossas reações, do que gostais e do que não gostais; nutro
a maior indiferença pelos vossos apupos e os vossos aplausos e sou incapaz de
estirar um dedo para acariciar os vossos sentimentos. Ide baixar noutro centro,
respeitável público, e não amoleis o escriba que de vós se libertou!
Chegar junto da pátria e dizer o mesmo: o
doce, o suavíssimo, o libérrimo te dana. Que me importo contigo, pátria? Que
cresças ou aumentes, que sofras de inundação ou de seca, que vendas café ou
compres ervilhas de lata, que simules eleições ou engulas golpes? Elege quem tu
quiseres, o voto é teu, o lombo é teu. Queres de novo a espora e o chicote do
peão gordo que se fez teu ginete? Ou queres o manhoso mineiro ou o paulista de
olho fundo? Escolhe à vontade - que me importa o comandante se o navio não é
meu? A casa é tua, serve-te, pátria, que pátria não tenho mais.
Dizer te dana ao dinheiro, ao bom nome, ao
respeito, à amizade e ao amor. Desprezar parentela, irmãos, tios, primos e
cunhados, desprezar o sangue e os laços afins, me sentir como filho de oco de
pau, sem compromissos nem afetos.
Me deitar numa rede branca armada debaixo da
jaqueira, ficar balançando devagar para espantar o calor, roer castanha de caju
confeitada sem receio de engordar, e ouvir na vitrolinha portátil todos os
discos de Noel Rosa, com Araci e Marília Batista. Depois abrir sobre o rosto o
último romance policial de Agatha Christie e dormir docemente ao mormaço.
Mas não faço.
Queria tanto, mas não faço. O inquieto coração que ama e se assusta e se acha
responsável pelo céu e pela terra, o insolente coração não deixa. De que serve,
pois, aspirar à liberdade? O miserável coração nasceu cativo e só no cativeiro
pode viver. O que ele deseja é mesmo servidão e intranquilidade: quer
reverenciar, quer ajudar, quer vigiar, quer se romper todo. Tem que espreitar
os desejos do amado, e lhe fazer as quatro vontades, e atormentá-lo com
cuidados e bendizer os seus caprichos; e dessa submissão e cegueira tira a sua
única felicidade.
Tem que cuidar do mundo e vigiar o mundo, e
gritar os seus brados de alarme que ninguém escuta e chorar com antecedência as
desgraças previsíveis e carpir junto com os demais as desgraças acontecidas;
não que o mundo lhe agradeça nem saiba sequer que esse estúpido coração existe.
Mas essa é a outra servidão do amor em que ele se compraz - o misterioso
sentimento de fraternidade que não acha nenhuma China demasiado longe, nenhum
negro demasiado negro, nenhum ente demasiado estranho para o seu lado sentir e
gemer e se saber seu irmão.
E tem o pai morto e a mãe viva, tão poderosos
ambos, cada um na sua solidão estranha, tão longe dos nossos braços.
E tem a pátria que é coisa que ninguém
explica, e tem o Ceará, valha-me Nossa Senhora, tem o velho pedaço de chão
sertanejo que é meu, pois meu pai o deixou para mim como o seu pai já lho
deixara e várias gerações antes de nós, passaram assim de pai a filho.
E tem a casa feita pela nossa mão, toda caiada
de branco e com janelas azuis, tem os cachorros e as roseiras.
E tem o sangue que é mais grosso que a água e
ata laços que ninguém desata, e não adianta pensar nem dizer que o sangue não
importa, porque importa mesmo. E tem os amigos que são os irmãos adotivos, tão
amados uns quanto os outros.
E tem o respeitável público que há vinte anos
nos atura e lê, e em geral entende e aceita, e escreve e pede providências e
colabora no que pode. E tem que se ganhar o dinheiro, e tem que se pagar
imposto para possuir a terra e a casa e os bichos e as plantas; e tem que se cumprir
os horários, e aceitar o trabalho, e cuidar da comida e da cama. E há que se
ter medo dos soldados, e respeito pela autoridade, e paciência em dia de
eleição. Há que ter coragem para continuar vivendo, tem que se pensar no dia de
amanhã, embora uma coisa obscura nos diga teimosamente lá dentro que o dia de
amanhã, se a gente o deixasse em paz, se cuidaria sozinho, tal como o de ontem
se cuidou.
E assim, em vez da bela liberdade, da solidão
e da música, a triste alma tem mesmo é que se debater nos cuidados, vigiar e
amar, e acompanhar medrosa e impotente a loucura geral, o suicídio geral. E
adular o público e os amigos e mentir sempre que for preciso e jamais se
dedicar a si própria e aos seus desejos secretos.
Prisão de sete portas, cada uma com sete
fechaduras, trancadas com sete chaves, por que lutar contra as tuas grades?
O único desabafo é descobrir o mísero coração
dentro do peito, sacudi-lo um pouco e botar na boca toda a amargura do
cativeiro sem remédio, antes de o apostrofar: Te dana, coração, te dana!
Texto extraído
do livro:
Um alpendre,
uma rede, um açude - 100 crônicas escolhidas. Rachel de Queiroz. Editora
Siciliano. São Paulo. 1993 p. 101-103.
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